domingo, 27 de dezembro de 2009



















Afranio passava o tempo entretido
em tirar lascas da madeira
dum ramo de arvore com a sua faca.

Todos os anos,
quando chegavam a neve e o frio,
no mês de Dezembro,
Afranio fazia o mesmo.

Durante dias procurava entre sobreiros,
oliveiras, carrasqueiros, aveleiras, azinheiras…
um ramo apropriado,
um pedaço de madeira que tivesse dentro
aquilo que ele havia de tirar para fora.

Seleccionava o mais adequado
e deixava-o secar perto do lume,
durante três dias,
ate que estivesse suficientemente duro.

Este ano tinha escolhido um ramo
dum velho azevinho que vivia perto do rio,
viu o ramo e de seguida soube que era aquele.

Afranio trabalhava a madeira duma maneira
quase inconsciente, quase mecânica.
Ele não pensava muito no que fazia,
saia-lhe assim,
mais devagarinho aquele ramo,
ia desfazendo-se da sua pele
e ia aparecendo aquela figura,
diferente cada ano.

Afranio tinha descoberto desta maneira
pastores, mulheres lavando no rio,
patos, galinhas, vacas, ovelhas,
homens a cavalo, peregrinos,
e um ano ate um menino quase nu.

Afranio talhava aquela figuras com delicadeza,
com uma estranha delicadeza para um guardador de rebanhos,
como ele era.

Quando rematava o trabalho,
embrulhava aquela aparição numa folha de couve,
atava-a com um fio feito de lá de ovelha
e deixava acima da mesa.

Depois caminhava seis quilómetros ate a aldeia grande
e na loja de comestíveis recolhia um Bolo de Rei pequenino
que ele mesmo tinha mandado fazer previamente.

Pegava no bolo,
voltava os seis quilómetros ate a sua casa,
apanhava o embrulho de folha de couve e,
com todo isso,
caminhava outros oito quilómetros,
ate a aldeia onde morava a sua sobrinha miúda,
Maria Adelaida.

Deixava o bolo e o embrulho a porta da casa,
batia nela,
e voltava a sua casa de novo,
canso de tanto caminhar,
de tanta lasca tirada,
de tanto trabalho que precisava para pagar o bolo,
mais com a mesma expressão de felicidade que,
agachado trás um muro de pedra,
fronte a entrada da casa da sua sobrinha,
antes de regressar de tudo a sua própria vida,
ele via na menina ao abrir a porta
e encontrar ali a sua figura do presépio e o seu Bolo de Rei,
como todos os anos,
sonhando com o duende do bosque amigo
que ela sabia era seu tio Afranio.




Afranio sentia todo isto,
na sua casa,
queimando lascas de azevinho na lareira.









1 comentário:

~pi disse...

o que me ocorre

é o cheiro

da lareira

o cheiro de-composto

dos pequenos paus

a crepitar

na alma da afrânio

foguinhos pequenos

e outros com-colo,

onde quero adormecer

acalentada

entre panos de lã de ovelha

de madrugada,





~